A MINHA PRIMEIRA AVENTURA NA GUINE BISSAU


 

Guiné-Bissau

A minha 1ª aventura .

A grávida, acabara de chegar ao Centro Medico Emanuel envolta em panos que apenas lhe deixavam transparecer um olhar bonito num rosto assustado..

Acompanhava-a o marido e mais umas quantas  mulheres , sendo que algumas eram esposas, vinham vestidas  da mesma forma carregando  crianças presas com panos nas costas , com bebés ao colo e outas crianças  pela mão.

A linguagem em principio fazia-se por gestos e algumas palavras em crioulo que eu já tinha aprendido, as não fosse a rapidez com que trouxeram para me ajudar , uma guineense que trabalhava no orfanato e que conhecia  o dialeto um dos muitos, que se fala na Guiné Bissau .

Ela traduzia para grávida o que eu dizia e vice versa , e com essa ajuda foi fácil a comunicação, começado a perceber a confiança seguida pela entrega ate ficarmos conectadas.

Ora…Sem médico e sem ecografia, avaliei a grávida e deparei-me com uma apresentação pélvica, mas queria ter a certeza e esperei mais um pouco com a grávida monitorizada, com o abençoado aparelho (cardiotocógrafo), doado pela  Maternidade de Elvas.

Enquanto isso foi contatando medico… que nunca atendeu.

Ainda estávamos a instalar o equipamento doado pela Maternidade Mariana Martins de Elvas e a organizar as  salas destinadas aos partos,

Observei de novo a gravida, registando na minha mente tudo o que os meus dedos tocavam, com a certeza de que a apresentação é pélvica, “nádegas”.

 

Desencadeia-se o processo de transferência para o Grande Hospital Simão Mendes pois a cesariana não podia acontecer na Casa Emanuel .

E a aventura começa aqui

Quando cheguei a Guine , na Casa Emanuel , encontrei  duas alunas do ultimo ano de enfermagem da escola de Évora, à quase dois meses e já bastante familiarizadas com os procedimentos que envolviam uma evacuação, uma vez que elas ja o tinham feito, com as crianças que precisavam mais do que elas podiam fazer.

Começou então a azáfama de recolher tudo o que era necessário, para a cirurgia, começando a encher um saco de plástico de tudo, desde fios de sutura, lâminas de bisturi, soros, compressas e tudo o que pudemos arranjar.

 E lá fomos nós na ambulância, conduzida pelo enfermeiro Xavier que já trabalhava a cerca de 7 anos, entre o Centro Medico Emanuel e o Hospital Simão Mendes na ária dos queimados.

 

Chegamos finalmente ao fim de quase três quartos de hora, ou mais, num percurso de terra batida, que  podia ter sido feito em 10 minutos, não estivesse a estrada com buracos que as rodas da ambulância se enterravam completamente, parecendo um barco em mar alto em dias de tempestade.

 

Avistou-se a entrada do hospital e eu pensei que horror… que é isto? Um edifício tirado de algum filme terrorífico? Fiquei quase em choque mas a prioridade era outra e então foquei-me.

O marido da grávida contactou um obstetra seu conhecido que não estava de serviço, mas que já tinha feito as cesarianas das suas outras mulheres e indo na nossa frente para o ir buscar a casa.

E já estava a esperava de nos na urgência da Maternidade do Hospital Simão Mendes.

No meio da escuridão que envolvia a entrada das urgências só se viam as redes mosquiteiras estendidas, cobrindo pessoas deitadas abeira dos esgotos destapados, condutas abertas e nós indo de lanterna na mão a iluminar o chão para nos desviarmos dos buracos enquanto empurrava-mos a maca, onde transportávamos a mulher grávida, que se queixava e gritava, ora com uma contração, ora com os solavanco que quase a atiravam ao chão.

Para entrar naquilo que parecia tudo, menos uma entrada para a sala de partos. Tivemos que arrastar aparelhos estragados, macas partidas e cadeiras de rodas todas danificadas num montão de ferrugem a impedir a porta de se abrir e podermos entrar com a maca, mas os esforços coletivos de todos nós, lá entramos.

Ela foi observada pelo obstetra amigo do marido, que a esperava. Era um médico jovem, de nacionalidade Cubana que estava ali em missão pelo seu pais, para ajudar aquele povo que tem menos de nada. Observou a grávida e olhou para mim e começou a perguntar tinamos levado  o material para se puder dar a cesariana.

A enfermeira que levava o material que nos tínhamos separado, despejou o saco uma mesa, que outro medico tinha indicado começando a separar e ao mesmo tempo a meter os fios de sutura no bolso da sua farda, enquanto escrevia num papel e copiava dum folheto publicitário colado na parede o nome de mais material e  marcas de medicamentos que lhe faziam falta para  irmos comprar à farmácia e só depois é que preparavam a grávida para a cesariana.

 

A grávida ficou à espera na urgência e nós lá fomos de papel na mão e de ambulância à procura da primeira farmácia, onde compramos algum do material que faltava e ainda fomos enganados, pois pagou-se o que não trouxemos entre outras coisas que não havia, voltamos à urgência, mas tivemos que voltar de novo a outra farmácia em busca do que faltava, pois faltava o saco coletor de urina e fios de sutura que já tínhamos comprado mas não traziam agulha, ignorando queles que os que tinha no bolso.

 

Gastamos mais de duas horas e a mulher à espera a gemar com dores numa sala de passagem para uns buracos onde se viam umas camas de metal enferrujado com perneiras e dispostas ao lado umas das outras sobre um chão onde os pés das guianenses pareciam mais brancos e limpos que a sala em questão e onde partos as mulheres pariam sem anestesia, sem condições de higiene e nada.

 

Finalmente obstetra deu por completo a lista e decidiu avançar com a cesariana, passavam quase tês horas desde a hora em que ali chegamos.

 Mas aventura ainda não estava acabada e nós os protagonistas,  ainda estava-mos a meio do guião.

Voltamos a colocar a grávida dentro da ambulância e lá vamos nós aos solavancos a caminho do bloco operatório com o enfermeiro Xavier ao volante conduzindo com todo o cuidado até ao edifício onde ia ser feita a tão desejada cesariana.

Voltamos a tirar a grávida da ambulância e fomos a empurrar maca iluminando o caminho com as lanternas ate a porta do edifício e ao abri-la deparamos com dois lanços de escadas, sem elevador. Carregamos a maca com mulher gravida a pulso, sobe o olhar de alguns homens que fomos encontrando, mas que não se disponibilizaram para prestar qualquer  ajuda , ate para  segurar as portas, mas fomos nós  até ao andar superior, carregando todo o peso, e era muito peso

Finalmente na ante sala de cirurgia pedi ao obstetra para entrar e assistir a cesarina e ele  consentiu que fosse-mos as quatro para dentro, eu as duas alunas e o enfermeiro Xavier, com alegria e como não tinham assistido a nenhuma cesariana , ficaram encantados.

Então enfiamos os barretes e as mascaras. Nesse instante perguntei a um homem de cor negra que se encontrava no corredor, que fazia e de onde era, respondeu-me que era cirurgião e cubano. Concluí que a equipa era toda cubana e isso tranquilizou-me um pouco diante de tanto horror.

A mulher é anestesiada e quando adormece, o obstetra inicia a incisão com  mão precisa de quem está habituado a usar o bisturi. Usou o material que tínhamos comprado lá fora nas farmácias e algum que levamos do Centro Medico Emanuel, mas quase não chega para terminar a cirurgia, as compressas começam a ser recicladas (espremidas e usadas de novo) os fios de sutura que compramos e levamos também não estava todo em cima da mesa, mas sim no bolso do médico que reclamava que devíamos ter levado mais.

Ainda me atrevi a dizer que ele os tinha posto no bolso, mas ignorou-me por conveniência.

E de repente os meus olhos se fixavam nas mãos de cada um deles, ao mesmo tempo que  comecei a sentir picadas, nas pernas e nos pés, através da farda, desviei-me então para olhar a minha volta e vi uma nuvem de bichos pequeninos que esvoaçavam junto à luz, por cima da mesa operatória e também  nas paredes, e vi baratas a correr no chão e até grilos. De repente, as mãos da enfermeira começam a fazer uma matança aos bichinhos em cima da mesa de cirurgia. Vejo também as mãos dos cirurgiões  enxotando os bichanos que andavam a volta do local da sutura e das luvas para poisarem.

 Foi arrepiante o que os meus olhos viram.

Fecham finalmente o abdómen da mulher, que foi para o recobro onde mais tarde o enfermeiro Xavier, depois de nos deixar na Casa Emanuel voltou ao hospital Simão Mendes para ele mesmo  refazer o penso com compressas e tratamentos que ele mesmo levou da sua casa.

 Exausta depois de tantas voltas e sem jantar. Deitei-me depois de comer uma fruta, mas não consegui adormecer, pois aquele horror fez-me irar e sentir raiva.

As mãos do obstetra trabalharam bem, será bom naquilo que faz, mas deixou transparecer que tem os olhos postos no dinheiro, ele e o outro, deixando-se corromper pelo sistema daquele pais e, com relação aos fios de sutura que guardavam no bolso, pude pensar que iam usar nalguma cirurgia em que possam fazer negócio.

Aqui quem pode comprar os tratamentos é tratado, quem não tem fica ali à espera, sentado ou deitado, mas à espera da morte se  os familiares, não conseguem as coisas necessárias a tempo de fazer qualquer tratamento ou operação, porque dentro do hospital não há nada de nada, nem afetos.

Quem precisa de internamento no hospital leva consigo a roupa de cama os medicamentos e todo o que é necessário  para o tratamento no caso de internamento. Este episódio atormentou-me por muitos dias.

Depois de arrumar a maternidade com os equipamentos que vieram de Elvas d estarem dispostos e prontos a dar o seu contributo, as grávidas, daquelas famílias que não podiam pagar consultas, aqui na  Maternidade da Casa Emanuel e bem diferente, havia comida e roupa lavada e os familiares não precisavam andar pelas ruas de Bissau à procura, nas farmácias ou no mercado negro para os seus doentes internados.

Os dias  foram  passando e ao saberem que havia uma parteira na maternidade , mesmo que esta ainda não estava pronta , as gravidas dirigiam-se a ela por necessidade e por segurança e nessa noite   bateram a porta do meu quarto, mais uma vez.

Era uma das muitas noites em que eu não conseguia adormecer, o pensamento teimava em vaguear por tudo o que são lembranças com saudades de tudo e todos que estavam a  quilómetros   de mim.

chegou uma grávida, gritaram do lado de fora do meu quarto.

Procurei a lanterna e a roupa as apalpadelas, o gerador desligava durante a noite. Consegui vestir-me e la vou eu, no meio da noite de lanterna na mão ate o edifício da Maternidade onde a sombra de alguém vindo ao meu encontro me fez bater o coração assustado, mas era o guarda noturno que vinha ao meu encontro e informar me o que se passava para me ajudar a entender o dialeto que falavam. A grávida aguardava sentada numa das cadeiras do corredor acompanhada por outras mulheres.

Levei-a ate à sala de observações, que tinha sido arrumada naquele mesmo dia e  a oportunidade de testar a sua arrumação  chegou. De repente fez-se luz em todas as salas porque o gerador havia sido ligado que bom exclamei.

Assim pude ver o seu rosto com uns olhos lindos mas muito assustados. Sorri-lhe e segurei a sua mão  tranquilizando-a , mas eis que vem uma contração intensa e dolorosa. Primeiro filho dos muitos que o seu marido tem de outras mulheres . Na guine ainda que a poligamia seja proibida há uma certa cegueira conveniente para a situação das mulheres nesse pais.  

Ela ficou internada e o parto aconteceu na madrugada dessa noite

O silêncio foi o grande anfitrião durante todo o trabalho de parto. Eu tentava comunicar através dos gesto e nos íamos entendendo com dificuldade, mas eu ia fazendo o meu trabalho ate que o bebé nasceu.

A grávida não prenunciou uma única palavra, nem ou único gemido e isso não aconteceu porque eu não falava o seu dialeto, pois gritar ou gemer é universal em qualquer linguagem, mas o silêncio faz parte da cultura ou ritual.

A grávida movia a cabeça ou torcia o corpo quando as contrações se tornaram mais intensas, nem mesmo no período expulsivo se ouviu um gemido, somente  a respiração ofegante pelo esforço que fazia a expulsar o bebe.

 As mulheres aqui fazem silêncio em muitas circunstâncias que vão para além do parto.

 RN também fez o um grande silencio ao nascer, bastante deprimido baixo peso para uma gestação de termo. A apresentação da pele cheia de lamugo, as mãos e os pés com rasto liso e ainda o vernixe com o qual vinha impregnado, tinha mais a ver com um parto prematuro.

Foi com muita calma, que pus em prática os meus saberes, enquanto o meu coração batia a mil, sem ter por perto algum médico de pediatria que me pudesse apoiar, mas com a graça de DEUS o bebé chorou e fez tudo o que devia fazer naquele momento ainda que aquele silêncio de segundos me parecesse uma eternidade.

Depois do parto e das apresentações, duas das mulheres ficaram para ajudar e se revezavam nos cuidados com a mulher que acabara de ser mãe, muito lindo esse gesto da parte dessas mulheres,  que depois vi a saber que eram as duas, das quatro esposas do seu marido. As outras  ficaram com os filhos destas duas quanto a quinta vinha parir  o seu primeiro filho

O dia nascia e olhei para as minhas ajudantes , que já tinham lavado e arrumado a sala de partos , fiquei a olhar para aquela mesa e pensei  na saudade que eu sentia do cheio e da adrenalina  no tope circulando pelo meu corpo e nesse instante tinha um sorriso  lindo no rosto de uma das mulheres mesmo a meu lado tentando falar comigo  em crioulo e a tentar  imitavam os meus gestos.

Depois da noite e do meu primeiro parto na Guiné-Bissau, formou-se  uma equipa com as duas as duas  alunas de enfermagem e mais uma funcionária, que ajudou como pode e como soube, na maternidade que eu acabamos de arrumar.

Foram dias intensos depois daquele parto, muitos partos aconteceram ate que eu regressei a Portugal com a sensação de dever cumprido, mas ao mesmo tempo achando que podia ter feito muito mais. Uma coisa eu sabia que teria que voltar aquele pais de povo tao pobre mas tao lindo .